a parede verde
sexta-feira, janeiro 15
quinta-feira, dezembro 26
Hoje, se pagasse à minha mãe por cada telefonema cheio de casos clínicos que lhe atiro no final do dia, já tinha voltado para casa deles e mais valia demitir-me e não, não é por não ter outro assunto, é porque isto pesa muito.
Trabalhar no ramo da saúde é uma coisa muito pesada. Ouçam, não vim para aqui queixar-me ou chorar o dia difícil.
Lembro-me de um dia perguntar à minha mãe, um dia em que ele tinha discutido a morte de uma doente com o meu pai - no tempo em que as pessoas eram doentes, não eram utentes nem pacientes - se não ficava triste quando os doentes lhe morriam. LHE morriam. Ela disse que sim, que às vezes ficava, que havia doentes de quem ela gostava e que lhe custava muitíssimo, mas que os médicos não eram deuses, que havia doenças que não tinham cura, havia doentes velhos, que a morte era inevitável, e que com essas mortes ela já tinha aprendido a viver em paz. Para além da morte de doentes-amigos, havia outras que a assombravam - eram as que ela não sabia porquê, porque tinham morrido. Se não souberes o diagnóstico, não sabes se fizeste o melhor, se o podias ter salvo ou não. Isso sim, é um pesadelo. Esses eram os casos que ela e o meu pai tentavam solucionar todos os dias à mesa do jantar - as camas 15 ao lado dos tachos às cotoveladas connosco.
Hoje tive um dia difícil. Morreu-ME um cão de 16 anos que, apesar de lhe saber o diagnóstico e a idade e a inevitabilidade daquela morte, era de uma colega e que, por isso mesmo, me custou. Tenho internado um gato simpático e de uma família simpática com um carcinoma indiferenciado abdominal que vamos operar amanhã e que apesar de todos os fingers crossed, tem tudo para acabar mal, e por isso me custa. Tenho, na jaula ao lado, um outro cão jovem, de uma cliente adorável, que tem uma insuficiência hepática pela qual já não podemos fazer quase nada e ainda assim vamos fazendo unhas e dentes, que não sendo em lado nenhum culpa minha, me entristece. Vão ME morrer, mesmo que a culpa não seja de todo minha - diagnósticos feitos, boas práticas, consciência tranquila - o peso é nos ombros.
Hoje escrevo isto exactamente por o dia ter sido difícil e por ouvir com demasiada frequência as pessoas a dizer mal dos profissionais de saúde - os preços e as pressas. Médicos, enfermeiros, dentistas, psicólogos, cuidadores formais e informais ligados à saúde (de medicina humana ou animal) não saem do trabalho à hora marcada e fecham a porta até às 9 da manhã seguinte. Os doentes comem connosco à mesa e dormem nas nossas almofadas.
Eu hoje ia ao cinema ver o Gaza. Não fui. Saí tarde e cansada.
Ia contar uma história palerma ao telefone à minha mãe. Não o fiz. Debitei angustias clínicas.
Ia cozinhar um jantarinho bom. É quase certo que vou jantar cereais.
A maioria dos profissionais de saúde que conheço são assim. Era bom que o mundo mandasse menos pedras. Não somos deuses e acreditem que isso também nos custa.
terça-feira, agosto 20
Às vezes questiono-me porque escrevo. Porque me entretenho tanto a contar histórias parvas quando podia, por exemplo, dobrar finalmente a pilha de meias que se acumula por emparelhar no pequeno balde verde no banco do quarto. Às vezes, bem sei, é realmente para poder justificar a falta de tempo para as meias, mas nem sempre. É que às vezes acontecem-me dias tão insólitos que merecem uma folha de papel. Hoje, por exemplo...
Desci para o que sabia que ía ser um dia de trabalho intenso na clínica. Chego à garagem e chave nem roda dentro da fechadura e o carro lá dentro. Eu raramente deixo o carro na garagem porque ela é como o balde das meias - um amontoado de coisas às quais ainda não arranjei pachorra para me dedicar, coisas de outras vidas que ainda não é tempo de me deixarem - e também porque o carro só entra num exactíssimo angulo e não obstante eu ser uma excelente estacionadora de carros, a maior parte dos dias não tenho esse finzinho de paciência. Mas a minha rua tem acácias e as acácias têm o mau hábito de cuspir para os carros quando os seus donos vão dormir e ontem eu tinha lavado o carro que estava imundo e o meu pai disse 'oh Lena, não deixes o carro na rua, mete-o na garagem. Isso vai dar-lhe cabo da pintura' e eu que tenho um carro novo e muito bonito e que quero que a pintura continue impecável não só mas também para não ouvir do meu pai, lá meti o carro na garagem.
Taxi it is.
O dia que prometia vapor na clínica cumpriu - a quimio do Niko, o banho da fera Vasco, uma pragana no olho da Patanisca, um pólipo no ouvido do Tofu, algumas dermatites avulsas e a colheita de sangue do pequeno puma de 6,5kg que dá pelo nome de Baguera, mais a auditoria dos alemães. Sem carro e sem hora de almoço, dei um salto ao shopping para ir buscar uma salada e aproveitei para levantar uma encomenda - umas sapatilhas - que esperavam por mim na tabacaria Camões 2. Fui num pé e vim no outro, até porque mesmo não havendo greve energética o meu carro continuava dormindo descansado na garagem, garagem essa, ou a sua fechadura, que teria de passar a problema de amanhã que hoje já estava a ser curto para tudo o que havia a fazer. Lá almocei como nunca recomendo, na secretária de trabalho à frente do computador e voltei ao trabalho. Da hora de fecho às 20 lá nos tivemos de arrastar mais 1h para fechar o dia de bichos e às 9 e pouco da noite a minha enfermeira deixou-me à porta de casa.
Fui espreitar a garagem - meto a chave, rodo a chave, rodo a maçaneta, levanto a porta e tudo no sítio. Tudo funciona, o carro está a dormir, nenhuma resistência ou vestígios da absoluta nega das 9.40 da manhã. Estranho.
Subo e abro o saco das sapatilhas e tudo correcto - tamanho, cor (podem gabar-mas, são mesmo giras), modelo, o que por si só é estranho já que a maioria das encomendas online chegam-me 4 números acima e modelo diferente. Espreito o saco e para além da factura, está lá dentro uma pequena lata de Heineken sem álcool e uma amostra de perfume. Sim, uma lata de cerveja e uma amostra de perfume. Claro que não minto, quem é que iria inventar uma coisa destas?
Decido arriscar um pouco mais - deixa ver o que o dia ainda reserva que ainda são só 10 da noite e fui levar o lixo. Passei na caixa de correio et voilá - um livro da Duras.
Pelo meio, não vos contei, ainda recebi uma boa maquia de dinheiro que me era devido e recebi uma notícia familiar estupenda.
Áá
Já tomei banho e não escorreguei no chuveiro. Meti-me na cama e ainda não caiu um pedaço de estuque na testa. Penso que por hoje já está tudo - uma segunda-feira como qualquer outra...
Amanhã, gentes que planeiam jantar cá em casa, é quase garantido que vamos comer esturro.
Ah, sabem porque escrevo? Porque se não o contasse, ninguém ia acreditar.
terça-feira, julho 23
Antonio, o Chileno
Há uns anos valentes, numa outra vida, quando eu era estalajadeira de sucesso (modesto), tive como hóspede um chileno chamado Antonio. Foi em Novembro de 2014 e estava frio e chovia e o Antonio era um daqueles viajantes de vida às costas. Era o único hóspede que tinha por esses dias. O POP não era bem um hostel, para dizer a verdade, era uma casa partilhada. Quem entrava fazia daquilo a sua casa, pés em cima de mesa, conversas de todos os tamanhos e feitios, partilhas de segredos e todas as coisas que só se pode fazer quando estamos livres das amarras do dia-a-dia. O António, o chileno, tinha cerca de 40 anos e estava em viagem sem bilhete volta - talvez quando o dinheiro poupado em trabalho de colarinho e gravata acabasse, talvez quando lhe desse saudade mortal de um prato da avó, talvez aí voltasse. Um dia. Até lá, há sempre trabalhos à distância e sazonais e quem é tem alma de viajeiro nunca se encontrará perdido. Assim Antonio chegou a Braga e até mim. Chovia e fazia frio e ele tinha estudado a lição
- Quero ir comer Papas à Sarrabulho, Helena!, onde vou?
- Antonio! hoje é sábado! em Braga é ao domingo que se come Papas! Amanhã digo-te.
A regra da casa era que, só havendo um hóspede (ou pouco mais), e sendo ele simpático, íamos beber um copo. O trabalho da manhã seguinte seria pouco, logo dava para deslizes. Assim foi com o António - sábado pela noite dentro pelo Subura com os meus amigos que também já morriam pelas noites com os estrangeiros.
No final da manhã de ressaca (pequeno-almoço dispensado no final da noite, para meu descanso), vem o António à recepção e diz
- Onde são as Papas?
Expliquei o melhor que pude e depois acrescentei
- António, posso acompanhar-te? Já não como Papas há anos!
E assim fomos os dois, e foi aí que ele contou a história.
Estava a caminho da Eslováquia - uma história louca, contou-me. 3 anos antes tinha conhecido uma Eslovaca de mochila às costas pelo Chile. Tinham-se apaixonado mas depois de algumas semanas de viagens e amor, havia o mar inteiro entre eles e embora nunca tivessem deixado de se falar, a coisa fica difícil com a distância. O Antonio seguiu a sua vida chilena e a Katarina a sua por Bratislava. Mas o amor tem destas coisas e a rapariga não lhe saía da cabeça, pelo que largou tudo - emprego, família, o piso em Santiago - pôs a mochila às costa e comprou bilhete de ida.
- Voy a ver Katarina en Bratislava. Sea lo que sea. Tengo de ir.
Não se fez anunciar.
, As Papas estavam óptimas, um abraço pôs a mochila às costas e seguiu viagem.
- Boa sorte, Antonio!
Em Junho do ano seguinte lembrei-me dele. E enviei-lhe o seguinte email
Una pregunta puedo?
Ni se si te acuerdas, ó si mismo te acordando, si me das la oportunidad de lo preguntar, pero como fue con la chica de eslovenia (era de eslovenia? Checa?). En Portugal se dice que la curiosidad mató lo gato y yo, hoy, me acordei de ti y de los astros y de lo tiempo cierto para haver algunas cosas y busco respuestas. Puedo?
Helena
Não respondeu.
Até que no final de Agosto, recebi a resposta.
Disculpa la tardanza en responder, estimada Helena..
domingo, julho 21
Se houvesse mais sol a tristeza secava, mas a minha casa é de solar de inverno e fresca no verão - cenário perfeito para a tristeza se pendurar nas paredes entre os quadros tortos, quase todos os dias do ano.
A Duras que é minha mãe de tristeza na parede e na mão - o amante da china do norte. E é agora que me fazes falta para que o quadro da tristeza fique completo - tu na minha cama, a fazer amor comigo pela última vez, duas vezes pela última vez.
terça-feira, julho 16
-'Portugal me da vértigo, sabes?'
-Vertigens, Laura?
- 'Si, vértigo. Portugal acaba en el mar. Después de Portugal no hay nada. Vértigo. El mar. Depués de Portugal no hay ninguna tierra. El mar. Es un mar grande, Helena. Las otras tierras, las que siguen, están muy atrás del mar. Vértigo. Como un precipicio. Portugal es un precipicio.'
-Sabes nadar, Laura?
-Sé.
quarta-feira, maio 8
Escrevo para não borratar a pintura (eu que nunca pinto os olhos) não vão os raios de verde queimarem com o sal e ficar com os olhos cor de outono seco.
É uma forma de ser dura como os carvalhos que o meu pai corta, resistentes a tudo menos à espada. Tortos. Escrever é a forma de ser torta sem quebrar pela cintura - pôr palavras à frente umas das outras (às vezes atrás) como outros têm o hábito de fazer puzzles na mesa da sala, condenando o jantar à mesa da cozinha, matar as horas até ser hora de ir dormir e outro demónios entrarem em acção e eu esses já não combato.
Escrever é matar os demónios diurnos.
Se pudesse não escrevia. Vivia só, tranquila. Mas a minha cabeça fala muito. Sempre que estou sozinha (e quando estou acompanhada também, na verdade) ele fala com tudo e com todos. Não pode ver um cão sem se lhe dar um bom dia e todos a todos os gatos lhes inventa uma história. Se vê uma árvores logo lhe pergunta quem foi o último a encostar-lhe a testa e que segredo lhe gritou para dentro da casca e quando vê o mar... quando o meu cérebro vê o mar... nem eu sei o que acontece quando o meu cérebro vê o mar - são marinheiros e piratas e as algas e dias idilicos em areias branca e peixe-aranha que picam os pés às pessoas que fazem xixi junto à orla e às vezes pequenas sereias apaixonadas e mexilhões. Cartas cartas cartas para vivos e para mortos (ai avó Arminda!). E perguntas - porque é que ele não me liga? Porque não ligo eu? Qual é o sentido da vida? E onde? Ou quando? E preparações para estranhos e realmente improváveis eventos futuros, o meu discurso para os oscares - há que estar preparada!, a entrevista ao senhor que pergunta o que dizem os meus olhos - não gosto de raia nem de couves de bruxelas, gosto de gatos e de livros. E depois a memória... a minha memória é do tamanho de um elefante! Há gente que tem memória de elefante mas o cérebro de um elefante pesa 7 kilos e meio. Eu aguento com isso! Mas a minha memória é do tamanho de um elefante todo. Adulto. Macho. E está todo desarrumado! Meias por todo o lado, tudo pedaços de histórias - as unhas gigantes da senhoras das finanças que não permitiam clicar no 4 da calculadora e por isso não podia ajudar-me com os recibos verdes, o dia em que o Buda me entrou em casa e era uma traça, o dia em que quase me caíram os dedos dos pés porque achei que nightswimming era mais do que uma boa canção e a noite era calma, aquela vez que achei que o amor era concreto e palpável, os setters do infantário, a Jean a reclamar em inglês 'tttchair! I'll sit in my tttttchair! Not in my share!', a Filipa a lamber o gelado depois de um queda na praia de Afife com ar vitoriosa, o papagaio da praça da republica 'te gustaria un regalo? cucurru cucurru!' e nem vos vou começar com os amores e os desamores todos lá enfiados dentro do elefante aos trambolhões como se dentro da máquina de lavar roupa. É assim o meu cérebro. Todos os dias.
Se eu pudesse não escrevia coisa nenhuma. Dobrava as meias, estendia a roupa, lavava as janelas, via a série, esmerava nas unhas - comprava uma daquelas máquinhas de pôr as mãos lá dentro que era uma boa forma de não conseguir escrever sem borratar a pintura.
Ler é outra forma de calar as vozes e manter as mãos quietas, embora por vezes os escritores me contem coisas que precisam de resposta, à vezes porque falam aos meus demónios (ai criatura tão egocêntrica que eu sou, sempre no centro de tudo) outras vezes por me inventarem novas dores, angustias que nem sabia que tinha, mas mal as vejo espalmadas impressas nas folhas de papel logo as faço minhas. Para essas conversas com deus, tenho sempre (quando o raio do gato pequeno não o rouba) um lápis do ikea na mesinha de cabeceira. (Um aparte, acho que os lápis ikea são uma piada maldosa. O tamanho até está bem, que eu sou pequena de mãos mas a dureza... 9H é cruel para os meus livros e qualquer nota mais emotiva sai em em forma de rasgão e sim, na hora de tomar notas, toda eu sou emoção). Mas ler é bom. Escuta-se. Com atenção. O meu cérebro cala-se e fica mansinho, enrolado debaixo da manta, boca meio aberta, todo colado às linhas, cada página tic, outra página tac, outra página tic, outra página tac, tempo tranquilo, sem tropelias.
'Tu pensas muito', dizia ele por detrás dos óculos escuros. Quando era pequena e falava pelos cotovelos, falava tanto como agora penso, o meu pai dizia-me 'quando não tiveres nada para dizer, diz pois'. Eu ficava triste e calava-me. Tudo aquilo que eu dizia, para mim, era importante. Eram coisas tão desimportantes como as conversas que tenho hoje dentro da minha cabeça. Aprendi a calar as cordas, agora incomodo cada vez menos (excepto nos fim de semana em que vou a casa dos meus pais e ai posso deixar a voz jorrar cá para fora que entre os meus já não me doi o 'Helena, diz pois!'). Mas quando digo ao meu cérebro 'diz pois' ele olha-me em silêncio durante 4 milésimos de segundo (o tempo que demora a olhar de dentro para fora) e volta logo à lenga-lenga e se discutíssemos hoje e agora o sexo dos anjos e o moço que bem vestido comprou um pack de cervejas de marca branca em pleno euro 2012 em dia de quartos de final? Sim, eu penso demais.
Eu estou cansada de tanta conversa dentro da cabeça - estas discussões entre mim e myself em que nem eu nem a outra (nem anjos nem diabos) chegamos a qualquer acordo. Ninguém cede, ninguém está certo, ninguém desiste e não há negociação nenhuma. Estas histórias que sou obrigada a escrever para poder arrumar os assuntos, criar pontos finais nas conversas por já não caberem mais palavras no meio dos textos, fazer letra pequena e ocupar as margens para não caberem adendas, pesam-me os dias.
Esta semana voltei aos comprimidos. Com os comprimidos não há histórias, não há paixões, não há copos de vinho e cigarros na janela da cozinha, não há livros rasgados. É tudo ameno. Sensato. Calmo. E nesta primavera triste sem finais de dia ao sol, paz é o que eu preciso.